Aqui
estou eu na Cidade do México, com um dinheiro que preciso trocar
pela moeda local... Não sei quanto vai dar, ou para o quê vai dar,
a minha certeza é a de que é pouco. Vou precisar arranjar grana,
não sei como, mas depois dos últimos acontecimentos, dos quais
agora não quero falar, aprendi, não tão facilmente quanto possa
parecer, a viver um dia de cada vez, a não pensar demais no amanhã.
Falando nesses passos pequenos e um bocado despreocupados que penso
em ter neste novo velho lugar, que minha memória teimosa diz
conhecer de algum outro tempo, lembrei do mito de Porthos, aquele que
ao pensar, pela primeira vez, como podia o cérebro comandar um pé
atrás do outro, para que pudéssemos andar, paralisa e morre
soterrado numa adega. Gosto de mitos.
Enfim:
só por hoje tenho uma garrafa de conhaque barato, do qual muito bebi
com ela pra afastar o frio das crises de abstinência; um quarto todo
forrado de carpete vermelho, que faria ser desnecessário o conhaque
para espantar o frio, mas ele por sua vez se faz amigo presente
porque me anestesia, assim como a minha companheira a droga, assim
como a mim ela com sua presença. Há também um telefone, destes que
ela queria comprar se um dia pudéssemos comprar algo que não
cigarros, drogas e bebida. Nele posso pedir algo, não sei, talvez
uma sopa. Teria sopa no México? Não sei, nem saberei, não sinto
fome, apesar da dor no estômago.
A
ultima vez que a vi sóbria, meu amigo, foi o dia mais triste,
suponho, da vida dela. Seu ex-marido veio lhe mostrar uma foto de seu
filho e lhe contar de sua preocupação. Ela e eu, que observava de
longe, no outro lado do bar, sabíamos qual falsa era aquela
conversa. O velho diplomata, com o qual ela perdeu parte de sua
juventude estranha, a fazia cavalgar nele e em cavalos de raça. A
fazia seguir seus conselhos de “não beba tanto, querida. Não fica
bem pra uma mulher linda como você”. A fazia ter postura ereta e
assistir aulas de etiqueta com uma senhora estranha... Tudo isso ela
me contava depois do nosso sexo, na nossa Bagdá, nas nossas não
regras, nos nossos silêncios, porres e barulhos.
O
passado dela não se apagava, a não ser quando parte dela ia embora,
quando a razão não se fazia presente, não era ouvida. Quando a
racionalidade evaporava através de sua pele clara, manchada no peito
de sardas, quando saia a razão pela sua boa surda pintada. É triste
que sua ultima imagem- aparição tenha sido pautada pela sobriedade
e pela, tão detestada por ela, razão.
Depois
do bar, ela ainda triste sem uso de nada que a fizesse escapar do
passado marido e do presente filho, pediu pra que eu tocasse sua
musica preferida. Toque, ela chorou, choramos; e com o dorso da mão,
da mesma mão, enxugou o seu e o meu rosto. Disse algo muito baixo e
levantou-se arrumando por debaixo do vestido a meia- fina preta
queimada de cigarro, e agora alto: “Preciso ir, tenho que fazer uma
entrega, ando sem grana pra nada e não quero mais que pague o que
uso. Eu te amo, meu Xenofonte, não duvide, nem esqueça.” Foram
esses os últimos sons e ordens calmas que saíram de sua boca, que
nesse dia estava branca, como há tempos não ficava.
Dias,
semanas, meses. Não minto, não faço drama, foram sim meses. Não
sai do quarto, com medo de ao ir comprar cigarros me desencontrar
dela, perder sua volta. Aos poucos sentia que o pacto que fizemos uma
noite, sentados na rua, ia se desfazendo perdendo sentido, não
porque esqueci e duvidei do amor que fez de nós raízes entrelaçadas
e unidas desgraçadamente, mas sim porque sentia que a existência
física e espiritual dela iam- se dissolvendo e escapando de meus
dedos a cada vez que angustiado pela falta de tudo, dela, de mim, da
bebida, da droga, da presença de algo, dos gritos, de suas mãos
machucadas de socar a parede... de tudo jogava uma água gelada em
meu corpo quente desse verão fétido que fez nos meses que Clara
sumiu.
Clara
sumiu. Eu desisti e duvido de sua existência agora. Não, não estou
caindo em contradição, o passado é meu amigo fiel, que não tenta
aliviar minhas dores. Vivo em função do que existiu e não existe.
O presente é este aqui, em que fumo e escrevo esta carta à você,
pra pedir, não em nome do presente, mas do passado- futuro, dessa
tese macabra, pra que se você a ver em algum lugar, boca vermelha,
branca ou verde, pra que se você ver seus cabelos negros que sempre
entravam intrusos como ela em nossos beijos. Avise que a amo, e que
se ela vier, não sairei de casa nem um só dia, até que por essa
porta, na entrada dessa ponte, no diabo a quatro, ela entre com uma
garrafa de conhaque barato segura por seus dedos caros.