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domingo, 19 de junho de 2011

Mentiras bonitas.

Faz quarenta dias que consigo me manter firme.
- Você vai dar alguma festa no seu aniversário? Eu queria te dar um abraço, não pode passar em branco.
- Não, provavelmente não. Comecei uma reforma, estou colocando prateleiras no quarto de hospedes, vou me mudar pra ele, preciso de espaço pros meus papéis.
- Bom, vou chegar na quarta, será que a gente não podia sair pra tomar um suco?
Senti aquela sensação de quando somos crianças e queremos muito alguma coisa, mas os pais deixaram avisado que não podíamos. E um misto de medo e vontade nos faz ter dor de barriga.
- Acho que sim. - respondi, mas logo cortei: - Não, melhor não, acho que estou indo bem, e te ver agora me abalaria. E também... Você ainda pensa em uma recaída?
- Penso.
- E?
- Não sei...
- Olha, não quero te ver, pelo menos não por enquanto, até porque, se você ama ela de verdade nem deveria pensar nessas coisas.
- É, é muita sacanagem com ela.
Ponto final, nada de recaídas. Estou bem, e não quero estragar o bem que construí nos últimos meses. Vi um por do sol de dentro do ônibus, foi o mais lindo que já aconteceu aos meus olhos, e eu estava ali, num ônibus, presa no transito, com pessoas estressadas ao meu lado, com um motorista apressado... E eu não tinha pra quem gritar: "Porra, olha esse céu!" Isso é tão ou mais angustiante do que saber que, mesmo existindo, nosso amor não cabe nesse tempo, ele não cabe nas lembranças, nem no chão sujo de esperma e nem no lençol suado. Ele cabe nas mentiras bonitas e na saudade do que não existiu. "Todo casal tem uma recaída", todos dizem, mas até nisso nós fomos diferentes.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

O amor mais a náusea.




Entro no vagão do trem, sento e abro o " Uma morte muito suave", de Simone de Beauvoir. Repentinamente uma voz faz com que eu levante os olhos: um senhor, de bengalas e com olhos apertados andava, cambaleando por conta do movimento do trem, com a mão estendida :" Cinco, dez centavos, não peço mais que isso.". E realmente não era preciso dizer mais que isso, muito menos contar uma daquelas histórias do tipo: "tenho uma doença em estado terminal, e os remédios são caros..." Pois ele mesmo era a tristeza, nunca imaginei que um dia a encontraria em carne e osso, tudo bem, mais osso que carne.
Os passageiros sentados o olhavam de rabo de olho, rapidamente, e logo baixavam os olhos, fingindo que nem o perceberam. E muito naturalmente voltavam a direcionar os olhares e a falsa atenção para o livro, para música escrota dos fones de ouvido, ou para a paisagem pobre da linha de trem Safira, que de jóia nada tem.
O senhor passa, a vida passa. Mas ele deixa seu cheiro de tristeza impregnado no trem, encrustado na pele de todos. Mas nem eu, nem nenhuma outra pessoa meteu a mão nos bolsos para encontrar alguma moeda. Tenho certeza que todos encontrariam alguma. E penso que deveria eu ter dado uma moeda á tristeza, quem sabe ela seja corruptível, e se venda por cinquenta centavos, e assim, vá embora da minha vida, saia da minha pele, e pare de se depositar em minhas unhas grandes. Mas ela já passou, e eu perdi a chance!
Volto os olhos ao livro, e leio: "Voltei para casa, conversei com Sartre, ouvimos Bartok." Sinto um cheiro que me faz tirar os olhos das linhas de Beauvoir: o perfume que o Cícero usa, ou usava, não sei. Olho para o lado e percebo que o perfume é do homem que sentou-se ao meu lado. Eu analiso-o na cara dura: é feio. Bem feio. Sinto frustração... Se ao menos fosse agradável, seria talvez uma aventura. Mas decido que vou viver uma aventura intimamente e em segredo.
Fecho os olhos e fantasio que ao meu lado esta Cícero, e o calor do braço encostado ao meu também é dele.
- Fico feliz por você aceitar me acompanhar até lá... Falei tanto de você que acabei despertando curiosidade geral. - eu disse sem abrir os dentes, impedindo assim o som de sair. Afinal a fantasia era minha, e eu tinha todo direito de não externar nenhuma sensação e nenhuma loucura, por mais sutil que seja. Prefiro acreditar que seja uma loucura sutil.
" Próxima estação: Itaquaquecetuba. Ao desembarcar cuidado com o vão entre o trem e plataforma." E o homem do perfume de Cícero vai embora. Demoro ainda alguns segundos pra abrir os olhos, mas os abro. E de olhos abertos e alma saudosa leio Beauvoir falando do casamento de seus pais: "Que o casamento burguês seja uma instituição antinatural, o seu caso bastaria para me convencer disso.". Há, quando termino de ler a frase, uma ruptura no saudosismo barato, algo suga meu pensamento, e o transporta até as ultimas conversas que tive com Cícero, onde nossas palavras e intenções eram cinzas. Um cheiro azedo permeia as recordações, que são bem recentes, e apontam as deficiências de nós dois:
- Fui a uma sarau com um cara, depois fomos pra casa dele, ouvimos Coltrane e assistimos Chaplin... blá, blá, blá. - eu provoquei.
- Hum... É o tipo da coisa que nós nunca fizemos, não gosto de poesias, nem de Coltrane, muito menos desses filmes. - ele dizia, sabendo que por trás do que eu dizia, estava apontando suas faltas.
E noutra vez:
- Você precisa beber menos, se drogar menos. Fiquei sabendo do se ultimo porre, até comentei com a Karen o quanto eu estava preocupado com você. Ela passou o fim de semana aqui em casa, e conversamos muito sobre você. - ele disse paternalmente, mas com a intenção de se vingar.
- Não se preocupe, eu sei me cuidar. - eu disse fingindo não dar atenção ao que ele dissera. Desligo o telefone e percebo a minha deficiência: eu nunca dormia fora de casa.
As lembrança, a saudade e a amargura assumiram uma forma, um jeito de ser, de se instalar inomeável. Não sei do que chamar.
Sacudo a cabeça e o cheiro azedo já havia sumido. Coloco o fone, e a musica parada ontem continua hoje, e termina exatamente assim: "Te perdoou por te trair." E continuo a viagem olhando pro nada, e lamento mais uma vez ter perdido a chance de subornar a tristeza, que sabe-se lá quando tomará de novo a forma humana.