Powered By Blogger

domingo, 17 de junho de 2012

Tragicamente.

    Ali na sala de projeção ele esquecia da mulher, reclamando de seu salário; e da filha, que arrumara um namorado estranho, algo melancólico. Era um mundo mágico, mesmo após 20 anos de mesmo serviço.
Ele ficava ali, apoiava a cabeça na mão, que por sua vez apoiava-se no cotovelo, que apoaiva-se num pedaço de concreto, e este pairava sobre a cabeça dos espectadores.
    Todos os dias a admirar belezas, a rir de feiuras e a observar todos os movimentos: dos casais, do homem que metia a mão na calça pra coçar virilha, o bocejar da moça num filme ruim, o "chiu!" da mãe pro filho hiperativo, disléxico e neurastênico, tudo tudo tudo. Era seu espetáculo, era a vida despercebida e particular que assistia enquanto seus objetos assistiam ao filme por ele rodado. 
     "Le mépris" e escuta o diretor ler os créditos, acha curioso, mas o fato de ser Godard o desanima quatro vezes mais, "tipo de filme que terminamos com perguntas que machucam demais.". Observa mais atentamente uma garota, chegou sozinha, sentou distante e apoiava os joelhos na poltrona da frente, "deve ter ido pra esse canto isolado só pra poder encostar os joelhos", desanima nosso projetor. Volta a atenção pras outras figuras da sala: homens fazendo pose de entendedores de Godard e donos de todas as respostas para as perguntas vomitadas na sua cara, "primeiro encontro", o homem classifica; a moça bem sucedida com doutorado francês, mas sem nenhum romancezinho pra pirar. É quando volta os olhos pra menina do canto e a vê chorando logo de cara, primeira cena, sente curiosidade, coisa rara, e olha pra tela: uma mulher está nua na cama, lê a legenda: Te amo totalmente, ternamente, tragicamente.

Um comentário:

  1. Reescrevo. Tinha escrito tudo. E devo ter batido numa tecla que apagou no final.Tento de memória mas não vai sair igual.
    Este conto adere ao trágico-existencial de um belo e angustiante filme:Le Mépris, O Desprezo.E qual o existencial que não é trágico ? O projecionista dos filmes e sua análise dos espectadores é um belo achado para contar conto e cinema. E o final bem colado ao filme : a moça chora,o projecionista olha e depois vê a legenda final. A identificação,o sofrimento de um amor para sempre nada, a morte do sentimento.Tragicamente. Como as belas imagens da "odisséia"que não virou filme, a postuera tranquila do velho Fritz Lang contrastando com a brutalidade do produtor. E o casal, e a mulher,sempre a mulher, causa e efeito,começo e fim...E o azul do mar, e o classicismo das estátuas. E Brigite, num filme que não envelheceu como os nossos sonhos, como a Brigite Bardot da música do Tom Zé.Teu Relicário das Índias vez por outra me faz mergulhar na vertigem da beleza.

    ResponderExcluir